O 1º dia de trabalho durante o isolamento

Meus amores

Hoje fui trabalhar e vocês passaram o dia inteiro com o Pai.

Uma das  partes boas de termos decidido organizar as nossas vidas para irmos trabalhar em dias alternados, é mesmo esta: nós saímos de casa dia sim e dia não e vocês não têm 2 dias seguidos iguais!
Ainda que tentemos manter as vossas rotinas e horários, eu e o Pai somos sempre diferentes, com ritmos próprios e dinâmicas únicas!

Um dia, quando forem mais crescidos, recomendo que leiam um livro espectacular, escrito por um dos maiores escritores portugueses, chamado José Saramago; esse livro é sobre uma doença estranha e súbita, que afecta a população mundial praticamente toda, com excepção de uma mulher. E é sob o olhar único dessa mulher, que nós (leitores) vemos o mundo que ela vê, a degradação, a mesquinhez, o egoismo da raça humana e como todo o planeta renasce e floresce à media que o homem vai morrendo. Esse livro chama-se "Ensaio sobre a Cegueira" e é um livro absolutamente fantástico e que eu li e reli mais do que uma vez.

Nunca na minha vida imaginei que poderia viver algo remotamente semelhante a essa ficção...
... mas hoje, quando fui trabalhar e durante o dia, foi exactamente assim que me senti: uma estranha, uma observadora fora do meu corpo, no meio de uma ficção incrivel...

Quando cheguei ao trabalho, comecei por desinfectar tudo: a secretária, o computador, as canetas, o telefone, a cadeira.... tudo!
Desinfectei as mãos também e coloquei umas luvas de latex, imaginando que poderiam me proteger sei lá eu do quê!
As pessoas iam entrando uma a uma, com poucos sorrisos, muitas com ar de medo, desconfiadas até delas próprias.
Todo o dia as pessoas foram "desfilando", umas de máscara, outras nervosas a apertar os frascos de gel desinfectante, muitas com sorrisos nervosos sem saberem bem como se comportar neste ambiente novo...

Quando fechámos na hora de almoço, o ritual de desinfecção repetiu-se: mesa, computador, telefone, canetas, cadeiras...
Mãos!
Desisti das luvas... já tudo o resto era demasiado incomodativo e estéril...não quero deixar que este virus apague de mim a minha necessidade de convivio, a minha natureza amistosa e calorosa.
Não quero tornar-me em "mais uma", obcecada com um possivel contágio (que provavelmente até já aconteceu, muito antes de toda esta histeria), paranóica com germes e virus e contaminações, alguém que não toca em nada que não esteja desinfectado, que mantém uma distância minima de 1 metro de qualquer outra pessoa, que não cumprimenta nem com um passou-bem, indiferente aos outros seres humanos...

Eu não sou esta pessoa...
Eu gosto de chegar a casa e encher o meu marido e os meus filhos de beijos; não gosto de entrar a correr, descalça com os sapatos na mão, despir-me na varanda e deixar a roupa na rua, meter-me na banheira e só depois de tomar banho e vestir outra roupa é que me aproximo de vocês... E mesmo assim, sem grandes abraços ou beijos...
Sempre vos disse "amo-te", todos os dias e várias vezes ao dia, e esses "amo-te" eram sempre acompanhados de abraços apertados, beijos repetidos nas vossas bochechas... invariavelmente, vocês reviravam os olhos e "resmungavam" qualquer coisa como: "siiiim mãe.... já sei...", ou "sim mãe... outra vez'!..."

Mas sabem uma coisa?! Agora, os meus "amo-te" são ditos olhando fixo nos vossos olhos e vocês... devolvem o olhar doce com um "eu também te amo, mamã", ou "eu amo mais, mamã" com um sorriso rasgado e maroto!

Meus queridos filhos, espero que saibamos manter este Amor enorme, fisico e profundo, entre nós! E não haverá virus ou doenças que nos possam mudar! Mesmo que o Mundo lá fora mude, que não nos mude a nós!!!

Eu amo vocês, mais que à vida! Daqui até Lua e voltar!

Beijos repenicados
Mamã

Só mais um pequeno pensamento para "memória futura": quando saí do trabalho tive que ir ao supermercado, porque precisavamos de mais leite, pão, manteiga, fruta fresca, ovos e alguma carne...
Tive que ir a 2 supermercados (sim... 2!) e consegui comprar ovos, 6 pacotes de leite, maçãs, uvas, pêras e bananas (nada mau... mas acho que nenhuma desta fruta tem sabor a sério...) e 6 bolinhas de pão de mistura... E a carne? Qual carne? NADA! Nem fresca, nem congelada, nem de porra nenhuma... Aqui está a tal "natureza humana" que o Saramago retratou tão bem no seu Ensaio... leiam, meus filhos, leiam!!!
... com Amor!

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